07/09/2009

EPITÁFIO

O personagem entra com o público e mistura-se a ele. Veste-se à semelhança dos velhos que trabalham, no Centro da cidade, como ‘homens-sanduíches’, carregando, ainda, uma vassoura e uma maleta com cacarecos pessoais. ‘Acomodada’ a platéia, personagem dialoga com a pessoa mais próxima.


Puxa vida, vai entender. Concorrido aqui, hoje. A Ala 8, então, nem se fala: está borbulhando de gente. É dia de festa, é? Santo padroeiro, final de campeonato, o que é que eu estou perdendo, para variar um pouco? Será que me atrasei de novo? (para alguém) Dá licença, viu. Boa noite, prazer... O meu nome é Adolf. É, Adolf mesmo, sem o ózinho no fim, coisa do meu pai. Nem conto quem ele resolveu homenagear colocando em mim esse nome, viu... Ainda mais porque eu sempre tenho que ficar explicando que é sem o ózinho no fim, o que já virou até vício, porque tem uma pá de gente, hoje em dia, por aí, que nem sequer faz idéia do que aquele bigodinho fez ou deixou de fazer. É assim mesmo, né, moço? Depois ainda falam por aí que eu ando meio esquecido, por causa da minha idade... O mundo anda esquecido, não acha? Quem diria... um monte de coisa aconteceu, hein? O moço lembra da chamada Grande Revolução Libertadora de 1964, ou aquela das duas bombas no Japão ou da trabalheira que teve o Lincoln para fazer a Grande América de hoje, ou aquela chamada: Queda da Bastilha ou as guerras da Sagrada Inquisição que vieram não muito depois das Santas Cruzadas... Nossa é aquelas para formar os gloriosos impérios romano, grego e egípcio... E a queda do Paraíso? (Tira um bloco de anotações da sua maleta.) Olha só aqui, olha. A gente não está fazendo nada mesmo, não é? ´Bora prosear um pouco, que conhecer gente nova nunca é demais, não acha? Então. Esse caderno hoje em dia é uma das poucas coisas que me restam, por isso eu carrego ele comigo. Só pro moço ter uma idéia, veja só... (folheando) Olha aqui, janeiro de 1984, pouca-vergonha, subversão escancarada no centro da cidade pelas eleições diretas pra presidente! Eu estava aqui, olha, aqui, moço, tá vendo, bem aqui, olha, está pequenininho porque tinha para mais de um milhão de pessoas. Aqui, mas eu sou esse pipoqueiro aqui, olha... Quer dizer, pipoqueiro de fachada, né... Eu estava, mesmo, anotando nomes, pra mandar pros homens, porque aquilo foi uma pouca-vergonha, onde já se viu? Aquele general foi realmente um frouxo, isso é que foi, não é à toa que ele pediu para todo mundo esquecer dele... Vou fazer disso aqui uma democracia, nem que tenha de dar porrada em todo mundo... (folheando) Inventar as coisas, moço, é tão fácil, não é mesmo? Agora, manter elas de pé, verdinhas sempre, ah, isso é outra história, viu! Hoje em dia a molecada, nem sequer sentiu o cheiro de longe do perigo comunista, fica falando por aí que aqueles foram os Anos de Ferro..., de..., como é mesmo? Os anos de (força para lembrar) chumbo! Hoje em dia se fala tanta coisa, não fala? Eu fico olhando e fico besta... Qual é a luta do povo de hoje em dia, hein? Qual é o inimigo? A Fome? Mas isso não veste farda, não tem idioma, nem tiro nem bomba alveja... Eu fico lá no meu trabalho olhando a vida de hoje em dia e fico vendo o povo lutando contra a falta de dinheiro ou desesperado porque não consegue comprar isso ou aquilo... a menina gritando com a outra, porque a mãe dela esqueceu de carregar o celular... (folheando) Olha aqui, olha! Eita dia feliz, esse aqui... 1977! Estádio lotado, olha. Zé Maria cruza, o beque tira, Wladimir chuta, bate no beque, vem Basílio e estufa a rede! Ah, que dia! Sabe lá o que foi ficar 23 anos esperando na fila, moço? Faz trinta anos, já... (folheando) Olha aqui também o tri no México... a conquista da Cidade Universitária pelos tanques da Revolução... a Normandia... a carteira de trabalho do Getúlio, que ninguém mais fala, nem nada... Ninguém se lembra de nada, hoje em dia... Deixa pra lá. (guarda a caderneta) Meu pai foi meu pai, como o pai dele foi o pai dele... Meu pai admirava aquele homem, que ele conheceu pelas cartas que os parentes dele mandavam para ele lá da Europa. Meu pai sempre ensinou a gente que tem hora que um homem precisa botar as rodas do mundo nos trilhos, mesmo que pra isso ele precise ser um pouco... bem... antipático, né, moço? Pois é. (pausa) TEM ALGUM GESTUS AQUI? NÃO DÁ PARA SABER DE QUEM SE TRATA Mas é verdade mesmo... vira-e-mexe eu me atraso. Quer dizer, nem sei se sou eu que me atraso ou se, hoje em dia, é o tempo que já é outro... Pode ser, não pode? Então. A gente perde o pé do bailado, por causa... ah, por um monte de motivo, nem sei. O ritmo é outro... os acordes da orquestra já não casam tanto com a batuta do coração... a dama já não é mais a mesma... (pausa) O moço gosta de música... de dança... de mulher? Gosta? Que música o moço gosta? Música boa, não me vem com Geraldo Vandré, com Chico Buarque, aquele Veloso, o barbudinho maconheiro. Pelo amor de Deus! Eu falei música, moço! Não, não, não... (apanha um toca-fitas na maleta, escolhe uma k7 e aciona. É “Monalisa”, na voz de Frank Sinatra) SINATRA??? CONTRADIÇÃO... ELE JÁ SE MOSTROU NACIONALISTA Ah, agora sim... Se o moço fecha os olhos, o que vê é um céu de estrelas, um outro mundo, um outro cheiro... uma outra dama... Uma outra dama, moço... com quem você dança sentindo o perfume dela... cuja maciez da palma da mão é eletricidade pura pro cavalheiro, porque uma mulher é uma coroa na cabeça de um homem que ergue nas próprias costas toda a sociedade de uma época dourada... uma época em que um homem está pronto para morrer, por seu trabalho, por seu país, por suas idéias... por uma mulher... (Ele se apruma, se penteia e tira uma mulher para dançar. De repente, volta a si e desliga o aparelho. Pausa.) Mas que bom que não estou sozinho, hoje. Que bom. Outro dia, Deus do céu, nem te conto. Conto, sim, porque, com tanta gente aqui, vai ser difícil tirar um cochilo, não vai? Então, enquanto isso, bom prosear, não é? Aliás, moço, “é enquanto isso que, na vida, tudo acontece”! Escreveu, anotou? Bonito, né? Eu adoro criar ditado... dá uma sensação de... de... de posteridade, não dá? Outro ditado que eu criei é esse aqui, anota, ...é sábio: “Nem tudo que o direito pergunta o de fato responde”. Gostou? Ditado e epitáfio também! O meu eu já fiz, tá escrito, guardadinho no saco da praça. É assim, olha: “Muito obrigado e até a próxima, se Deus quiser!”. Hein!? Não é o máximo? Fecha o filme e ainda deixa gancho pra uma “parte 2”, não deixa? (pausa) Mas eu ia dizendo... O moço trabalha com o quê? Batuta! Anda ali pelo centro da cidade? Porque é bem provável que a gente já tenha se trombado por ali, viu. Eu trabalho no calçadão, atrás do Caixa Eletrônico, virando a esquina. Meu ponto fica entre o do pastor e o do mágico. Sabe aquele pastor, o que já viu o Pai, tirou braço-de-ferro com o Filho e dorme na cama do Espírito Santo? Ele mesmo, o baixinho de bigodinho fino e terno cor de... de... ah, de sol, de chuva e de vento. Eu fico ali, entre o pastor e o Mister Lord, aquele cearense de Crato, que vende mágicas na rua. Que supimpa, aquele moço! Tão fino, tão fora de esquadro, tão... dono de mistério. (pausa] Ah, moço, como gosto de mistério! Hoje em dia todo mundo parece que tá travando sua última batalha contra o mistério, não tá? ... Tudo tão explicadinho, qualquer coisa todo mundo sabe, tá na banca de jornal, não tá? Antes não era assim, não... Nos anos 70, no meu trabalho, a gente mergulhava madrugada adentro, se segurando na corda-bamba do mistério, pois era a morte de um lado e a vida do outro e a gente era como o barqueiro, sabe, moço, a gente levava aqueles pestes de um lado pro outro... (pausa) Eu é que não me entrego! Trabalho duro, doze, catorze, até dezesseis horas por dia, faço meus bicos, construo meu futuro, pra ter decência e não sair pela porta do fundos. Tem noite que eu fico por ali mesmo, no calçadão, sabe? Quando eu conto, ninguém acredita, mas não é que o Caixa Eletrônico conversa comigo? Não me olha assim, não, moço, que eu to falando sério, no duro. O Caixa Eletrônico conversa muito comigo, mesmo. Coitado, ele vive deprimido. Não tem coisa no mundo pior que depressão... é coisa séria. E só to falando pro moço porque tá na cara que o moço é letrado, se veste bem, tem uma aura... Com o povo eu nem perco tempo porque não vai entender. Mas a gente se encontrou aqui, nesse lugar especial, e é por isso é que eu gosto tanto de vir aqui. Que se dane o dia em que vão fechar a porteira, impedindo a saída! Se tem coisa que eu aprendi nessa vida foi o dar valor a uma amizade, viu, moço! Todo mundo tem muito pra trocar um com o outro, não tem? Ser amigo de gente feliz é mamão-com-açúcar, agora quero ver encarar o tranco duma depressão. Então, tem noite que eu levo pra lá uma cachacinha boa, uns amendoim e vou passar a noite com o Caixa Eletrônico. É bom ali dentro, é quentinho. O Caixa, sei lá, é tão... tão...! Mas é uma luz fria, sabe, de quem tá oprimido... de quem fica esperando que o povo lembre que ele existe. Eu chego, a gente fica ali, só os dois, um bocadinho no silêncio, só olho no olho... então ele desabafa pra valer... chora muito. Ouço o tilintar das lágrimas dele caindo no chão, lá do outro lado. Ele se sente muito usado, não é fácil, viu. Pudera! O povo só procura ele por interesse! Ninguém, fora eu, ninguém vai lá ter com ele sem terceira intenção! O cara dá, dá, dá e uma relação de amigo, que é bom, necas de pitipiribas, né!? Amigo quer trocar, moço! Mas o povo vai até o Caixa, e dá-lhe usar, usar, usar e usar! Olha, moço, se falo vão pensar que eu to louco, mas tem noite que o Caixa Eletrônico e eu ficamos ali, só eu e ele, na intimidade. E olha que Deus protege, viu, porque os caras do seqüestro-relâmpago nunca vêm quando eu tou lá. Eu sinto que o Caixa gosta de mim. Não tenho vergonha de falar, não. A vida é curta e a gente gasta a maior parte dela fugindo do coração. Eu, nunca mais. Vê lá se algum dos meus filhos ou dos meus netos sabe o que sobrou de mim, hoje em dia? Até o doutô Canheiro, que até medalha me deu em festa de fim de ano, lá no departamento, cadê ele? E olha que besta é coisa que eu não sou. To sabendo que muita gente dançou depois que o Figueiredo pediu as contas, mas não foi o caso do Dr. Canheiro, não, que taí firme-e-forte, trabalhando como segurança de político. De papo o pelicano tá cheio, moço. Graças a Deus eu tenho a amizade fiel do Caixa Eletrônico... Dou todo o valor. Outro dia, passei uma agüinha no coitado, que tava fedendo a dinheiro e isso ninguém merece... (pausa) São os mistérios da vida, né, moço? Quem vai provar provadinho, ali, preto-no-branco, que esse mistério não existe? Pois então, é por essas e outras que eu me sinto muito honrado em dividir o calçadão com o Mister Lord. Nome importante, em inglês, coisa chique pra ninguém botar defeito. Outro dia, descobri que o nome dele é Benedito... Agora me fala, moço, se ele não tem razão? Isso lá é nome de mágico? Benedito? Não tem charme, não tem glamour, periférico demais. Ele me contou que, quando ele começou a animar aniversário de criancinha, ele se apresentava como Benny Diet, aí sim, bonito. Mas o povo chamava ele ou de Mister ou de Lord, por isso ele deixou assim. (pausa) Eu fico ali no meu ponto, plantado, com uma orelha grudada no Apocalipse do pastor e um olho fincado nas moedinhas douradas que o Mister tira da orelha das pessoas. Que bênção ver os olhos de quem passa na mão dele! Tão diferente dos berros do pastor, que embaça os olhos de tudo mundo com tanto enxofre que ele respinga pra todo lado! Ainda mais eu, coitado de mim, que fico ali, do lado dele, todo dia, de segunda a sábado, sem férias nem décimo-terceiro. Como diz o Getulinho, meu mais velho, “Deus é mãe, não é madrasta!”. É, como se não me bastassem as decepções da vida, tem mais essa: o Getulinho deu de ser exotérico, adorador da Deusa Mãe e sei lá mais o que... Mas nisso ele tá certo, porque eu também tenho o bruxo do Mister, ali do meu lado, mostrando que o céu também existe. É bom, né? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Queria tanto que o Caixa Eletrônico conhecesse o Mister, de noite... Mas o Mister trabalha de madrugada em coisa de telemarketing, sabe? Mas o trabalho é bom, não é ruim, não. Tem que trabalhar, não tem? Então. Tenho que ficar de pé, sim, porque, senão, ninguém me vê e, aí, coitada da patroa... (pausa. Coçando a nuca.) Mas que diabo é essa coceira, aqui, que não tem dedo que vence, diacho? Mas me diz, moço, que horas tem aí? Mas já? Cruz-credo. Faz tempo que vocês chegaram? Olha, aqui é muito bom pra relaxar, viu. Pensar na vida... Nas alas 7, 8 e 9 a coisa tá um pouco complicada, assim de gente revoltada, que, no lugar de largar os fardo e respirar o ar frequinho desse silencião todo, vem lavar as mágoas por aqui! Agora, essa ala, aqui, é boa demais. Eu vira-e-mexe, sempre que posso, venho pra cá. Se bem que, nesta noite,... Não sei... não foi igual como sempre é. Vim pra cá, depois que saí lá do calçadão... Mas vim sentindo um troço estranho aqui na nuca, além de... sabe... uma saudade de sei lá o que... É. Não sei... (pausa] O moço vem sempre aqui, vem? O que faz da vida, hein? O moço vive a vida? Veio de onde, hein? Pergunta boa, né? De onde vim? Pra onde vou? Por que eu existo? (Apanha um instrumento na maleta.) Quer ver só? Olha. Numa dessas noitadas com o Caixa Eletrônico, acabou surgindo isso aqui, olha só (cantando): Eu lá sei o que eu sou / Eu já sou o que eu já sei / Sigo andando’ pronde’ eu vou / ‘Pronde’ eu vou é o que serei / Aquilo que ainda não sou / Mas já sou o que eu já sei / E já sei o que eu já sou” (Guarda o instrumento) Letra minha. A música é do Caixa. [pausa] Mas, pois é. Estava lá no calçadão, nessa última madrugada, porque eu moro longe e, às vezes, pra falar a verdade, é preguiça mesmo o que me dá de ir até lá em casa, só pra tirar um cochilo e logo depois já ter que voltar. Despesa nem tem, pela minha idade. E, cochilo por cochilo, tem vez que eu pego o busão no ponto inicial e vou até o final, tomo um café por ali, e pego o mesmo busão de volta, pra acabar o cochilo. Casa é bom quando tem gente esperando, não é verdade? Nem o Saravá tá mais lá, pra me abanar aquele rabão, me esquentar os pés na cama. Não gosto nem de falar nisso, viu, moço. Tinha vez, quando era turno do Tião, que ele me deixava trazer o Saravá no busão dele até aqui. Eu amarrava ele no poste do relógio e ele ficava ali, quietinho, de vez em quando lambendo as pernas das meninas gostosas que passavam pertinho dele, que ele não era besta. Uma farra. Nem era velho. Morreu de birra, o pulguento, só porque eu não trouxe ele comigo nos últimos tempos. Melhor é mudar de prosa. Então. Termino o meu serviço e fico pela cidade mesmo, olhando as vitrines, proseando com esse povo de rua... E pelo menos três vezes por semana eu consigo aumentar os ganhos, porque o dono daquela lojinha de roupa feminina me paga pra vigiar a porta da loja dele, pra vagabundo não dormir na frente, sabe? O doutô não gosta disso, porque isso não combina com a loja dele. Então ele me paga 5 reais pra eu vigiar a porta dele. Isso é uma bênção, me engorda a renda. Mesmo tendo que trabalhar no dia seguinte, eu dou conta, porque sou homem trabalhador e o trabalho ‘dinifica’ o homem. Então. (pausa) Mas que diabo é isso, agora, que não consigo lembrar do meu dia de hoje? Tá bom que eu posso até tá velho, mas gagá? Não gosto disso, como é que vou anotar na caderneta? Sou do tipo que conta tudo! Conto, sim. Tim-tim-por-tim-tim de quando fazia faxina nas celas do Dops — época que só não foi mais feliz porque eu tava casado com a baleia da Olga — como detalhe-por-detalhe do que fiz ontem e anteontem. Será que os miolos tão fraquejando, moço? Posso não. Sou só eu pra contar comigo. E olhe lá. Então, que diabo é esse esquecimento, agora? Ah, mas espera um pouco. Ufa, que bom. Da madrugada eu me lembro, sim... O Coceira! É, isso mesmo. Tive que dar um jeito no Coceira, na madrugada passada. O vagabundo levou a Pomba-Véia pra furunfunfá bem na porta da minha loja, foi isso! Nossa, graças a Deus. Acho horrível esquecer as coisas. Ficar sem passado nem futuro... quem é que merece? Mas foi isso, sim. Eu me enchi da autoridade que o doutô me deu e falei pro desgraçado: “Aí, Coceira, cê vai me desculpar, mas não vai dar pra tu e essa cruza de deus-me-livre com cruz-credo ficar aí na porta da loja, não!”. Fui curto, grosso e objetivo, não fui? Porque não tem muito trololó com essa cria de rua, não. Tem que ser direto. Teve uma noite que não tive outro jeito a não ser ressuscitar uns truques que a gente usava no Dops pra fazer uma menina entender que na porta da minha loja ninguém fuma crack. Deu certo, pra variar, né? Porque se tem uma coisa que aquela época ensinou foi que os fins justificam os meios... Mas com o Coceira eu me lembro que eu tava muito irritado, mesmo, porque ele é desses que fingem ser surdos, sabe, moço? Eu posso ser bronco, moço, mas tem umas coisas que a vida me fez engolir goela abaixo e que até hoje não teve jeito de cagar pra fora. Uma delas foi saber que o melhor jeito da gente anular o outro é tratar ele como louco. Isso me tira do sério! Isso não pode, moço. Essa bola é redonda, tá todo mundo em campo, não tem reserva nesse jogo. Só tem que escolher o lado, o time. Tá todo mundo fedendo do mesmo jeito, porque perfume se compra, mas suór e peido é obra da verdade. O fio-dum-cão nem tchuns, acredita? Com um risinho na boca, ele se empirulitou pra cima da Pomba-Véia, uma mijona usada de dar dó, que tem só dois dentes na boca, e entrou nela como se eu nem estivesse ali, uma desavergonhice sem fim, ali debaixo da lua, que é o olho da Nossa Senhora dos Aflitos. Pra não perder minha autoridade, troquei a porrada pela diplomacia: “Aí, Coceira. Não atravanca a minha labuta, vai. Vai comer ela ali, na porta da Lotérica, que é lugar de jogo de sorte e azar...”. Mas, sabe, moço. Tem gente que tem o dom de despertar o Cão na gente. E sem dizer um a. O Coceira é um desses. A Pomba-Véia eu nem falo, porque essa já perdeu o juízo há anos, passa de pinto em pinto todo dia e toda noite, ali nas quebradas da praça. Nem sente mais. A única coisa que faz a gente ver que ali dentro ainda existe um fiapo de gente é a musiquinha que ela vive cantarolando, sem parar: “O anel que tu me destes / Flor, vem cá / Era vidro e se quebrou / Laialaiá-laiá”, só esse trechinho, é tudo que sai da boca dela, quando a boca dela não tá cheia de... de outras coisas. Mas o Coceira, esse não. É cabra safado, raposão. Sabe ainda muito bem onde está, quem é e a que veio. Então, sabe moço, aquele momento que a ira se espreguiça aqui no meio das tripas e vai subindo feito louca babando pras cabeças? Então. Como é que eu fico se o doutô me resolve sair da cama dele e vir saber do meu serviço naquela hora da madrugada, hein? Onde é que vai parar a minha moral? Pior, e os meus 5 paus? E tudo por causa de um bosta? Nem a pau. Esse dinheiro eu preciso. Metade eu planto no saco que eu guardo enterradinho numa moita lá da praça e a outra metade eu pago pelo meu sossego com a Olga, que, pé-de-pato-mangaló-treis-veiz, é a última coisa do mundo que eu quero ressuscitar nessa minha altura do campeonato. (pausa) Puxei o fôlego todo, agarrei o Coceira pela gola daquela camiseta com o merda do Guevara me olhando, e puxei ele num só golpe! Não é que o fedelho nem sequer saiu do lugar? Ficou me olhando com aquele olho de peixe morto e aquele sorrisinho besta na boca, enquanto ia e vinha na Pomba-Véia... Porque o moço sabe muito bem, não sabe, que no coito não tem ideologia ou disciplina que se imponha. Minha santíssima, Nossa Senhora dos Aflitos, que ia ser de mim se o doutô me apanhasse num fraquejo daquele? Fico sem meus 5 paus e ele ainda podia contar pra dona Laurinda, minha patroa da loja de ouro. Se isso acontece, fudeu o zebedeu! Que é que eu faço? Voltar pra cama da Olga, nem morto. Se perco essa renda é batata que vou ter que fuçar no saco lá da praça e aí, Deus me livre, credo-em-cruz! Quando eu esticar as canelas de vez, quem é que vai pagar minha decência na hora da minha carcaça ir pra barriga do mundo, hein? Não, não e não! Aquele dinheiro vai ficar enterrado lá, na praça. É sagrado, prum caixão QUE TAL FUNERAL? decente. Não vai ser um bosta dum cheirador-de-cola, dum vagabundo que nem lembra do próprio nome, que vai agora me tirar o pouco que me sobrou, não tou certo, moço? Não comigo. Tudo tem limite. O Coceira tem aquele risinho que me lembra o da Olga, debochada dos infernos. Ah, o que não faz a falta de juízo do pinto! Eu sei que é pecado pensar assim, que anjo é anjo, não tem culpa das cagadas dos pais... Mas ninguém me tira da cabeça que o Getulinho foi emboscada daquela rinoceronta. Ah, foi. O moço sabe como são as coisas, não sabe? Homem-macho tem suas necessidades. A gente deixou de ser feliz quando a mulher deixou de ser fêmea, isso é que foi. Então, Aí a gente acaba se queimando na própria fogueira. Fui lá me engraçar com a fartura daquela mulher e de brinde ganhei quatro irmão mais velho me plantando num altarzinho improvisado. Quando acordei do susto, tava enjaulado. E o pior é que a graça da Olga sumiu de vez, ela nunca mais foi a mesma das nossas trepadinhas debaixo da jabuticabeira do quintal da casa dela. Cheirava mal, era bronca em cima de bronca, não tem homem que agüente. Mas Deus é mãe, não é madrastra, e minha sorte era os presos políticos em quem eu desopilava meu fígado, porque ninguém é de ferro pra suportar uma mulher que gostava era de limpar os pés em mim, que não conseguia me ver lendo um jornal ou ouvindo a Voz do Brasil, porque patriota é coisa que não tem democracia que me faça deixar de ser, viu, moço? Eu caprichava o serviço lá no Dops, fazendo faxina pesada, ajudando os agentes a botar moral nos comunistas, era mais pra deixar o corpo bem cansadão mesmo, porque eu só tinha paz, só conseguia ficar feliz quando o sono me levava embora, lá pros campos em que eu cresci, descendo colina dentro de pneu de trator, disputando rolemã, correndo atrás da Lurdinha, que, besta, foi viver com um coronel lá no Chile e acabou sendo pinochetada quando a esposa dele descobriu, e resolveu colocar ordem na casa dela. Eu dormia pra ser eu mesmo, de novo. Mas não é que a baleia nem no sono me deixava em paz? Roncava feito uma porca velha, e peidava tudo o que comia durante o dia inteiro. Ainda por cima, ela dormia chupando os dentes. Teve um tempo que eu reclamava, quando o diálogo não adiantou mais, tentei sufocar ela com o travesseiro, mas ela me mandou uma joelhada no saco sem sequer parar de roncar. E, ainda por cima, se espalhava na cama, me espremendo contra a parede. Nem o direito de dormir no chão ela me dava. A doida-varrida acreditava que eu saía de noite pra fazer a farra com a vizinha, uma moça com síndrome de down, filha dum bicheiro que sonhava com o dia de me pegar pra se vingar do sumiço do filho nos anos 70. Então, a Olga me obrigava a dormir ali, do lado dela, sem posição, com câimbra no corpo todo e até falta de ar. No dia seguinte, eu com olheiras até o pescoço e ela com aquele sorrisinho besta na boca bigoduda... dá pra imaginar mais de 20 anos dormindo assim, moço? Igualzinho a esse sorrisinho do Coceira, que reduz a um átomo da tripa de um verme da bosta líquida do cavalo manco do estuprador sifilítico da freira paralítica, sabe? Então. Todo mundo sabe, patrão gosta de vigiar o seu dinheiro. Eu não tinha porque agüentar aquilo, moço. Você concorda? A Olga eu suportei durante 27 anos, afinal de contas, sabe como é... um homem-macho tem suas necessidades e, de bobeada em bobeada, hoje eu também tenho o Castelinho, o Costinha, o Emilinho, o Ernestinho e o Joãozinho, isso porque a Margareth não vingou, a pobrezinha. Mas o puto do Coceira não é nada meu. Vou lá perder minha carta de alforria com a Olga e a dignidade da minha carcaça por conta desse marginal? Ah, moço, eu precisava agir. Afundei as minhas garras na cabeleira do Coceira e na cabeleira da Pomba-Véia e agüentei firme o ataque furioso das pulgas e dos piolhos, o que não foi missão nem um pouco tranqüila. Cansei de fazer isso com preso político que, na hora de eu limpar a cela, cismava de cantar a bosta da Internacional Socialista ou fazer discurso pra boi dormir. Dessa vez deu certo, moço. Nada como a prática, não é? Arrastei os dois calçadão afora, e nem assim a Pomba-Véia, cantando a musiquinha dela, liberou o pinto do Coceira! Sei lá de onde me veio a força pra arrastar aqueles animais. Só sei que fui indo, deixando um rastro de melequeira dos dois pelo caminho, até largar os dois na porta da lanchonete do miserável do Donato, lazarento, fio-dum-cão, que Deus e Nossa Senhora dos Aflitos hão de ser justo de encher de formiga a boca desse sujeito antes de mandarem ele sem escala pro último chão dos infernos. (pausa) Não, moço. Cá entre nós. Não querer dar pros outros as sobras de comida do dia, que vão acabar no lixo, eu até entendo, eu até concordo, porque negócio é negócio, certo? Quem não tem dinheiro que não tenha fome, uai. No lugar dele, eu jogava era na privada, porque no lixo tá assim de vagabundo envergonhando a raça, fuçando, comendo, um ultraje ao bom-gosto das boas famílias que pagam imposto e tudo o mais. Jogava na privada. Aí, pelo menos, estaria colaborando como bom cristão pra obra do Celestial, alimentando os peixinhos dos rios, do mar... A vida é assim, meu amigo. Uns tem, outros não têm. Se todo mundo tiver, não vai ter pra ninguém. É o mundo, moço. Cada vivo que jogue o jogo do lado que o mundo pôs. Eu não trabalho o dia inteiro e ainda faço minhas rendas de madrugada? E eu tenho 72 anos. Tudo isso é justo, justíssimo. Mas, Vigem Nossa Senhora, coisa que eu não admito, de jeito nenhum, é crueldade. Não tem desculpa, porque Deus-Nosso-Senhor-Jesus-Cristo-Salvador tá vendo tudo e ai-ai-ai desse joio todo na hora do Juízo Final. Seu moço, olha bem. Nunca, de forma alguma, jamais, em tempo algum nenhum vivente tem o direito de trancar um banheiro! Isso é um absurdo, não se faz, é demonice de baixíssimo calão! Onde é que já se viu? Eu sou um eleito, batizado, crismado e temente. Não se pode impedir um filho de Deus de despachar decentemente os seus restos pros cafundós do mundo. Isso é um direito constitucional, não é, moço? Se não é, devia ser: “todo homem tem o direito de cagar e de mijar em paz e decentemente”. Pois aquele gordo miserento já não me obrigou, três ou quatro vezes, a ter que me moquifar acocorado atrás da banca ou nas moitas da praça? Um horror todo o povo compartilhando tanta intimidade minha! Como é que o moço ia se sentir, se tivesse no meu lugar? E o pior, sem papel higiênico, do fofinho, branquinho, que rala-cú nem pros presos eu dava. Correndo o risco de ficar fedido no trabalho e espantar a freguesia da dona Laurinda, porque ouro e cheiro de merda são coisa que não rima, não é? (pausa) Então. Foi sem dó nem piedade que tasquei o coito do Coceira e da Pomba-Véia ali na frente da lanchonete do Donato, até mesmo porque eu sei que, depois da farra, esses dois bem que iam puxar um ronco até o sol forte ou a guarda municipal vir varrer os dois dali. Dei uma boa varrida na frente da loja do doutô, que uma vez, por conta disso, me deu 2 reais a mais! [pausa] Pois é, moço, disso tudo eu me lembro bem, sim... foi nessa madrugada, como é que eu não ia me lembrar? Mas que diabo tá acontecendo com essa minha cabeça, que não me lembro de nada depois que acabei de lavar a frente da loja de roupa feminina? Eu sei que eu tava passando a vassoura, cantando: “Quando eu estou aqui / Vivendo esse momento lindo / Olhando pra você / E as mesmas emoções sentindo / São tantas já vividas / São momentos que eu não me esqueci”, eu lembro que me deu uma vontade louca de contar tudo pro Caixa Eletrônico, mas eu vi que ele não estava num bom momento, que tinha um rapaz muito bem vestido? PRECISA? sendo socado e levado de carro pelos moleques do relâmpago, gente espalhafatosa, dando tiro pro céu, um perigo. Hoje em dia o que mais se encontra por aí é bala perdida, não é? Me veio a voz da Olga, falando que o Joãozinho queria fazer Inglês, porque Brasil não é país que gente de bem consiga viver... E nisso a putana tem razão. Eita povinho promíscuo, misturado, sem raça nem graça! Ah, quem me dera ter sido colonizado pela Inglaterra, ao invés dos portugas... hoje seríamos uma nação poderosa, republicana, espalhada pelo mundo inteiro... É, o Joãozinho tem a quem puxar! (pausa) De tudo isso, eu me lembro bem... estava um pouco sonado, também, precisava tirar um cochilo antes do próximo trabalho... Resolvi relaxar por aqui, ali na ala 8, que tem umas tumbas bem alegres e protegidas do vento e não tem cheiro ruim, são bem vedadas... Mas hoje a concorrência tá feroz... E ainda tem essa dorzinha que não me larga, bem aqui... (leva a mão lá e tira uma bala perdida) Ihhh... O moço vai me dar licença, porque eu não tou gostando nada disso... (saindo, conversando com alguém invisível) Que é que você tá fazendo aqui, cabra safado? Quer parar de cantar essa bosta? E ainda tão desafinado? (desaparece, cantando a Internacional Socialista).

biaggiolic@yahoo.com.br

04/07/2009

AH, SE CAUBY FOSSE MESTRE DE CAPOEIRA...!


Por Dr. Delfino Anfilófio Petrúcio *

... definitivamente: assim não dá pra trabalhar!

É por essas e outras que eu sonho com a fundação do S.A.P.O.S., o Sindicato de Analistas Palhacísticos Organizados em Sindicato. Falta respeito pela profissão! Faltam melhores de condições de filosofagens! Falta melhor qualidade de lustra-móveis para a nossa cara-de-pau! Faltam sapatões e calçolões estofados mais adequados aos tropicos e tropeções que levamos o tempo todo! Faltam mais idéias pra gente reclamar de mais coisas que faltam! O que mais importa é a falta que as faltas fazem, principalmente na hora que faltam. E, no dito pelo não-dito, viva o Benedito, certo? Do que é que eu estava falando, mesmo? ... humm... Tá vendo?! Falta memória! Definitivamente: assim não dá pra trabalhar.

É muita pressão, pra quem nem sequer é xamã-goleiro pra dar conta de tanto ataque ao mesmo tempo! Dou exemplos. Se já está difícil explicar a Sarney e Lula que essa ficação anda dando muita bandeira, imaginem só agüentar a Família Jackson insistindo para eu instalar meu consultório em Neverland! Mas nem que chova narigões! Aquilo não é lugar pra eu aplicar risoterapia-de-choque, dia-sim-dia-não, com injeções de cócegas de meia em meia hora, em Mahmoud Ahmadinejad e Kim Yong-nam... Isso sem falar na síndrome de pânico de Hugo Chaves, causado pela desaparição de Bush. Não, não! Mas nem que a vacamarelafizpipinapanela tussa!

Querem mais?! Então o que me dizem da incontrolável pandemia de H4PN12w@#Grrr2 (o vírus da Invejite-Aguda) causada na comunidade de palhaços-capoeiristas por causa do show de puro estilo que, sem mais nem menos, dona Belabelinha e seo Canneta resolveram derramar nos terreiros de Capoeira? São centenas de emails querendo saber qual é a fórmula secreta da hipnótica ginga-parafúsica-mamulenga do Canneta e como é que a Musa consegue, num único rabo-de-arraia, juntar mudra, samba-no-pé, karatê, hula-hula e axé!

Mas como eu sou um palhaço sério, requintado, fino e gentilclown, resolvi ir regar as flores de minhas idéias em Foz de Iguaçu, a convite de meu guru, o Mestre Bolinha. Lá, armei meu divanzinho portátil diante das Quedas, acendi meu cachimbo-de-bolhas-de-sabão e lancei-me a uma outra dimensão de consciência. Fiquei tão feliz por me encontrar com seres caiados de branco, cantando e tocando para aquelas Águas abençoadas, que nem me importei com a sapequice de um daqueles querubins, que flechou meu rubro narigão... No entanto, oda aquela paz foirepentinamente rompida pelos brados de Papaiaço:

[cantando] Cantei, cantei

Como é cruel cantar assim

E num instante de ilusão,

Te vi pelo salão

A caçoar de mim...

Era meu prestimoso editor (hoje em dia temporariamente exilado em Andrômeda). Teria sido algum tipo de surto? Não, a história era outra: Papaiaço estava totalmente transfigurado, com seus parcos cabelos encaracoladinhos, saltitando na ponta dos pés e, numa das mãos, acenando às Águas de Iguaçu com um delicado lencinho dourado e bordado, soltando bitocas à multidão. Tratava-se de um intenso "transe mediúnico" e, cientes disto, os seres caiados de branco postaram-se atentos, a seus pés.

— É chegado um Novo Tempo!

— Sim! — saudaram todos.

— Uma nova Tradição! Uma nova Linha Esotérica! A Linha do Cauby!

— Oooooooohhhh! Vamos contigo, mestre!

— NÃO! Só aqueles que passarem pelo Dr. Calabreza...

— Como assim!!!??

— Ele fará o exame de aura dos seus penteados e maquilagens!

[gritos histéricos e efusivos] Shoooooooow!

— Eu mesmo cuidarei do Núcleo Musical da nova Linha...

— Nós lhe agradecemos, mestre! Mas quem fará a nossa Guarda de Dança?

— Clóvis Bornay, é claro!

— Diviiiiiino! E quem cuidará dos Dragões da nossa Guarda?

— Isabelita dos Patins, meus amores!

— Iupiiiii! E da nossa Roda de Capoeira?

— Madame Satan!

— Víxe!

— Nosso Núcleo de Comunicação ficará por conta de Leão Lobo. Nossa brava Juventude será conduzida por Roberta Close e a concepção estilística de nossos mantos estará nas mãos mágicas de Rogéria!

— Quem será nossa Santa Padroeira, mestre?

[cantando] Cán-cei-çãããããããããããããoooo...

[muitas palminhas e saltitchos] E nosso Mentor, mestre, quem será?

— Adivinhem...?

— ...

— CLÔ!!!! [fogos de artifício, confetes, serpentinas e muita (muita!) purpurina]

Que mundo é esse, meu Narigudo Eterno?! Assim não dá! Não se tem mais sossego nessa vida? Recolhi minhas coisas e voltei para meus pacientes no mesmo instante. Definitivamente: assim não dá pra trabalhar...


* Dr. Delfino Anfilófio Petrúcio é pós-graduado em Filosofagem,

com mestrado em Corinthianismo Ortodoxo e PHD em charme, beleza, elegância, gostosura e modéstia.

Consultas e reclamações ao Serasa: biaggiolic@yahoo.com.br

08/06/2009

Sigma-Tride! Sigma Tride, por favor, responda, Sigma Tride! Não é possííííííível. Sigma Tride, é Plêiade Téta, em quinto grau de latitude meridional leste, Sigma Tride. (sons) Sigma Tride? Graças ao Todo!!!! Eu sabia! Eu sabia que os pães-de-queijo da charlatã da Charlotte, eram o componente necessário pra eu consertar o meu comunicador! (sons) Sim, Sigma Tride, é Plêiade Téta falando. Estou em território de residência temporária situado no Hemisfério Sul do Planeta chamado Terra, exatamente entre a Constelação de Orion e a de Apus. Solicito abdução, repito, solicito ABDUÇÃO. (sons) Perfeitamente, Sigma Tride, minha missão está cumprida. Levo os relatórios e mapeamentos desta população humana. É um nível de humanidade que mal se reconhece como tal. Não compreende a unicidade entre o grão de areia e a estrela mais distante, entre o vento e as ondas energéticas da emoção, entre o pensamento e um tsunami. A maioria ainda concebe a própria existência por uma linearidade temporal absolutamente reducionista e enclausurante. (sons) Se soubessem como é difícil criar em laboratórios isso tudo que ainda existe aqui naturalmente... (sons) Portal Hale-Bop Gama-Quadrante? Oh, Sigma Tride! Graças ao Todo!!!! (fecha o guarda-chuva) Abdução autorizada. Não tenho mais o que fazer por aqui, vou-me embóóóóóra.

23/04/2009

10/04/2009

UMA FILHA...

Foto: Roberto Esteves

29/03/2009

A GRAVURA

Eu recebi por email esta gravura. Tempos modernos, novos impulsos, não é? Sim. Num ato de impensada coragem, por desconhecer completamente sua origem, cliquei o "abrir" e esta cena surgiu aos meus olhos, desviando-me completamente da análise do tal projeto de lei que se espalhava sobre a mesa do meu escritório, no 18º andar do legendário Martinelli, no centro velho desta Capital.
A primeira idéia que me veio deu-se graças à época da universidade, quando das aulas de História, diante de um documento, fosse ele qual fosse, a primeira missão (depois da decisão de encará-lo realmente), propunhamos a ele um bom "bate-papo"...
Quem seriam essas pessoas parecia ser a primeira pergunta à gravura, certo? Mas preferi silenciar um pouco e olhá-la simples e demoradamente... Sim, pois, aliás, mais do que uma idéia, foi uma sensação que me invadiu, a partir do momento em que entreguei meu olhar. E esta sensação, pelo menos a priori, eu compreendi como sendo a de CALMA...
Daí a um subsequente afrouxamento do nó da gravata cor de chumbo de seda chinesa, ganha daquele fornecedor no reveillón passado, foi um pulo tão impensado quanto o clique abrindo o anexo de origem desconhecida. Então, a perceber uma sensação quase esquecida de... de... de calma, eu acionei a tecla "mute" do meu terminal telefônico e o sinal vermelho sob a maçaneta da porta do escritório. Anete que se entendesse com os próximos agendamentos, o que, aliás, não seria a primeira vez. Ela é boa nisso.
Calma...
Trovoada!
Gosto quando isso acontece, desde menino, na vidraça da sala de aula, na escola, que embaçava, devolvendo pra dentro da sala o cheiro de suor de todo mundo. Então, o que vinha à tona era precisamente a respiração de todos nós. A de cada um de nós. E, debaixo dela, deitava-se o silêncio. Então, eu olhava e escutava a chuva na vidraça e o pensamento ia lá pro fundo de mim mesmo...
Como agora, diante desta gravura do Michael Zichy. "Quem é ele", pergunto ao Oráculo. Porém, — ai de mim! — são nada aproveitáveis as respostas do google... Deixa assim, então. Ao artista agradeço pela provocação que me causou este resultado de suas próprias inquietações e volto à gravura em si, um bico de pena muito delicado, sensível...
A forte sensação de calma passa a fisgar outras tantas, uma torrente, que busco dar uma refreada para não queimar etapas... Me parece mais importante, nesse momento, ater-me ainda a algumas observações ainda objetivas...
Por exemplo, que lugar estão os dois? Sim, um quarto, é claro. Mas, somente isso? Não, evidentemente. Um "quarto" não passa de quatro paredes cercando um móvel feito para dormir. Não é este, definitivamente, o nosso caso. Ali não é um quarto, muito menos aquilo não é uma cama. Não. Mire aquelas paredes...
Estão nuas! E não é à toa... Precisam disto pra emoldurarem o acontecimento sobre o leito destes amantes, exilados nesta alcova! Tinha de ser assim, só assim... paredes nuas retém única e exclusivamente o cheiro dos dois, paredes nuas, o leito, os almofadões, a cabeceira da cama e a mesinha ao lado, com copos, o vinho, a vela acesa do castiçal rústico...
Eles não estão nus... mas o que vestem são como sobras do que mostram fora dali... São jovens e querem estar ali... e é só! O resto é respiração.
Descarto a primeira camada desta suculenta cebola e finalmente me dou aos amantes... Fumam! Apenas fumam, mas... que nuances de textura e calor sorvem os lábios de cada um deles? A que beijam, nesta suspensão? Sinto muita vontade de apreciar o semblante dela... está oculto de mim! Chego a entortar-me para vê-lo melhor... mas não. Não posso.
Então, sem que sequer eu "pense em pensar" nisso, a imagem de Anete me invade, emprestando à moça da gravura uma determinada cor... mas... como assim? Tudo não foi mais do que um fim de festa como qualquer outro nos últimos dez ou doze anos de empresa, nem me lembro o motivo daquele coquetel, certamente outra empreitada do Marcondes pra bater o martelo com a Incorporadora, nada mais. Um fim de festa, apenas isso!
Simplória demais, embora muito, muito, muito... doce! Vai ver que o Santos tinha mesmo razão: era melhor tê-la demitido e chamado uma terceirizada, dessas que trabalham no "sistema carrossel" de rotatividade inter-empresas. Se a Lolah descobre? Que quiprocó vai ser... e às vésperas das alianças... Não, não.
Outra surpresa me remete à gravura, então! Sinto o gosto de chocolate em minha boca... tabaco de chocolate... e um profundo, um indescritível prazer me invade... um prazer com gosto de chocolate... com cheiro de chuva embaçando a vidraça... lençóis suados... umidade e maciez... e Anete sorrindo pra mim, com olhar maroto...
Largo ao longe a gravata e abro os botões da camisa. Calor? Não... não é de metereologia que estamos falando, aqui...
Amplio em tela inteira a gravura e passo a respirá-la... Ouço uma canção, cantarolada bem baixinho... uma canção muito antiga que não consigo reproduzir... mas sei muito bem de onde ela vem: é dos lábios cerrados do Amante... Ele é um Músico! Um poeta que ganha o sustento cantando nas tabernas do vilarejo... Ele canta enquanto fuma seu chocolate e sente as carícias da língua dela...
Espera! Não... Não é dele, de seus lábios, que jorra a melodia, não!... É dela, de Anete! É ela quem canta... o prazer que sente por lhe dar prazer... o sabor dele... Os pés do poeta! Ela se aninha entre seus pés... oferecendo a ele, ao mesmo tempo, a maciez de seus cabelos e a umidade de seu púbis...
Um sinalzinho de nada no canto da tela faz-me perder a respiração, como se tivesse levado um soco no meio do estômago, como se alguém houvesse batido à porta daquela alcova...
Ao reconhecer o sinal da uma mensagem instantânea de Lolah, sinto-me como violentamente invadido, ameaçado naquilo que tenho de mais meu, verdadeiro e puro: aquela gravura!
"Quero as nuvens. Vem" — diz a mensagem, com o maldito cursor piscando, esperando...
Fecho imediata e violentamente a janelinha da mensagem para voltar à gravura, mas Anete já não mais está ali, apenas o desenho de uma moça masturbando-se no tornozelo de seu amante, que fuma um cachimbo enquanto jorra seu leite nos lábios dela...
março, 2009

ENQUANTO ISSO...


24/03/2009

CENAS DE VIADUTO

Estas cenas eu escrevi a pedido do Projeto Tertúlia e, depois, as compilei aqui, neste formato...
CENA I

(hora de almoço, uma mulher na faixa dos 50 anos, vestida de forma refinada mas discreta, sóbria, vem do lado da Igreja, em direção ao Largo. Pára junto ao parapeito que dá para o lado da Avenida Prestes Maia, despercebidamente ao lado de uma velha, negra, jogadora de buzios e cartas divinatórias, que termina de atender a um consulente/figurante)
Velha
(pro consulente) ... não cobro não, fio... o fio põe aqui na porquinha Vó o que bem quisé que a Vó leva lá pros carente da comunidade... (consulente coloca um dinheiro no cofrinho, se levanta e começa a ir embora, quando ela lhe dá o último recado) Mas o fio tem que abrir o jogo com a parcera, viu. O fio tem que dizer a que veio, pro fio não morrer mais cedo, mesmo tando vivo, viu, fio? Nossa Senhora de Oxum te acompanha...
(silêncio. A Velha arruma seu tabuleiro. A Mulher olha para a avenida, abaixo do viaduto, segurando uma bolsinha com fervor)
Velha
(quase num sussurro) Vem cá, vem, fia...
Mulher
(indiferente ao convite) Me desculpa, me desculpa, me perdoa, foi sem querer, me desculpa... (silêncio)
(a Velha começa, aos poucos, a cantarolar uns pontos de orixás, esfregando os búzios, sem pressa alguma)
Mulher
Ele veio e eu... eu...
(a Velha joga os buzios sobre o tabuleiro. Silêncio. Ela lê o jogo)
Velha
Hum...
Mulher
Maldito! Maldição! Eu não podia, não podia...
Velha
(olhando o jogo) Um lenço da cor da rosa...
Mulher
(agressiva) CALA ESSA TUA BOCA, velha imbecil! Mendiga!
(silêncio. A Velha continua a jogar o búzios)
Mulher
Eu tentei! Tentei, pronto. Vou fazer o que? Não consegui... E olha que eu moro aqui, bem perto. Mas fecharam tudo, não passava nem mosquito sem o maldito crachá! Eu não tenho culpa! Tá, eu tenho culpa, sim. Eu sei. Eu podia ter varado a madrugada, mas o Antonio vinha... Vai saber quando ele vem... Vem tão pouco... Ele disse que vinha... Não veio. Mas e se viesse? É tão... de vez em quando! É difícil de ela entender... Nem parece que foi mulher... Mas ela não foi mulher... o padre disse que ela era Santa... Santas perdoam, não perdoam?
(Velha cantarola um ponto de Oxum)
Mulher
Eu fiz o que eu pude... Não consegui, uai... Mas como é que vai perdoar quem nunca errou? Por isso ela foi lá pro céu... (silêncio, ela olha o céu) Tão longe, lá... (olha a avenida, com alívio) Pertinho... Eu não caibo no céu...
Velha
Joga, fia...
(Mulher mantém o olhar fixo na avenida)
Velha
O lenço rosa...
Mulher
Um bordado que a Mãe pediu pra eu acenar pro papa, quando ele viesse aqui na nossa terra...
Velha
Joga fora, fia... joga ele fia, joga...
Mulher
O Antonio vem tão pouco...
Velha
Põe o macho dentro do lenço também, põe, fia...
Mulher
(abre a bolsinha e pega o lenço rosa, mantendo-o preso somente pela ponta dos dedos) Não veio... Manhã cedinho, corri ali pro Largo... Quase que cheguei perto do Santo...
Velha
Fia... é o lenço, fia... só o lenço...
Mulher
Mas o Santo já tinha entrado no Mosteiro... acenei pro nada... Senti o peso da mão da Mãe aqui dentro, ó (apontando o coração)...
(a Velha levanta-se com muito esforço e com todo cuidado aproxima-se da Mulher, que não reage. Com muita delicadeza, a Velha abre a palma da mão, pedindo com o olhar que a Mulher lhe dê o lenço rosa. Pausa. A Mulher aquiesce. A Velha acarinha o bordado bem feito, alisa o tecido e com o lenço, enxuga os olhos da Mulher. Então, a Velha leva o lenço ao próprio nariz e soa o nariz com toda força, estendendo o lenço para a dona, como a devolvê-lo. Pausa. Badaladas do "sino" do Largo São Bento. A Velha sorri e esse sorriso puxa um sorriso da mulher, que aos poucos se afasta do parapeito e começa a rir com mais intensidade, ao que a Velha a acompanha, intensificando ainda mais o riso, até que ambas estejam em franca gargalhada e nem percebam o lenço rosa caindo viaduto abaixo)

CENA II

(um homem vem pelo Viaduto, na direção da Cásper Líbero. Jovem, bonito, barbeado, cabelo engomado, terno-gravata de grife, maleta 007 de primeira linha em uma mão e, na outra, um case de câmeras de filmar. Está sorridente, confiante e caminha muito calma e objetivamente pela "faixa central" do viaduto, até que, ao chegar ao meio, vira abruptamente à esquerda e vai para o parapeito de onde se avista o Vale. Pára, abre o case, instala duas câmeras com tripés, testa o som e todos os detalhes para a captação de imagens. Satisfeito, apruma-se, penteia-se, aciona o rec e vai para o parapeito. Escala-o, de forma a ficar somente com as batatas das pernas como apoio contra sua queda. Sorri)

Ele
"São as águas de março fechando o Verão", minhas senhoras, "é a promessa de Vida no meu coração", meus senhores.
Estamos de volta!!!! Respeitável público, benvindo a mais um Paredão. Meu nome é João. Mas podem me chamar de Prometeu, é o meu apelido. Trabalho ali, na Bolsa de Valores. Lugar de gente antenada. Volatizada! Agradeço sua atenção. Mas, por favor, não se distraiam: a faixa amarela é a sua segurança. Então, não a ultrapassem. Caso contrário, posso me apaixonar por vocês e levá-los comigo para o Sol! Combinado.
Não vou ocupar muito do seu tempo, porque se tem coisa que é verdade é que "o tempo é dinheiro". E, por falar nisso, eu sei. Eu poderia estar roubando, estuprando-mas-não-matando, ou matando, ou violando, subornando, articulando, gerando lobbies no grande mercado de capitais, ou negociando orgasmos, paraísos fiscais, divisas, dívidas, rasgando dinheiro ou barganhando o tempo alheio, mas NÃO, meus senhores... NÃO, minhas senhoras!
Estou no confessionário! E quero contar a todos o horror que vivi, hoje de manhã, ali mesmo, na virada da Florêncio de Abreu, eu vi um sujeito imundo cagar, bem ali. E depois plantar na sua merda uma flor muito cheirosa, dessas que chamam de dama-da-noite... E o perfume dela misturou-se ao perfume dele, quer dizer, daquilo dele. E eu fui levado ao Tribunal dos 40 deuses egípcios, que na sua balança puseram, num prato o meu coração e, no outro, uma pétala daquela flor. Como pesa, minha gente, um coração hoje em dia. O meu coração.
Então estou aqui, honestamente, com meus olhos voltados pra dentro. De braços abertos pra tudo que me venha e que me vá neste mundo, pra prestar um Tributo. Um tributo à Verdade. À minha própria verdade e que se dane a Universal.
Então, meu povo, agradeço seu olhar e convido todos vocês... para um LEILÃO! Quero leiloar minha permanência aqui, entre vocês, entre nós. Vamos!!! Está aberto o pregão. Qual será o primeiro lance, senhores?
Uma MOEDA, senhoras? Hein?! Não, não... Convenhamos: é muito pouco! Moedas eu tenho de sobra... e pesam na bolsa da alma... Então, quem dá mais!? Quem dá?
Será que ouvi direito, ali? Teria alguém me oferecido um BOM ÁLIBI que justifique minha parte nisso tudo? Será? Mas... não, obrigado. Obrigado, mas isso aí eu também tenho de monte, pra dar, vender e emprestar a juros de mercado... Vamos em frente!
Quem aumenta o lance, quem? O prêmio é de muita valia, meus senhores... é a minha desistência de "entrar pra História"... Hein?
Ah, sim, ali. O que? Não acredito! A coisa tá esquentando mesmo! Eu teria realmente ouvido alguém me oferecer um PERDÃO? Um perdão... Assim mesmo, in cash, sem álibi nem moeda? Uau!!! Confesso que estou bem tentado, viu... Um perdão, olha só... Mas não, não! Essa foi por pouco, bateu na trave mas saiu pela linha de fundo, porque, cá pra nós, cidadão: perdão de fora é chuva de bolha-de-sabão no deserto, né! Plóft! Melhor seguirmos em frente...
Vamos lá, o pregão está aberto, quem dá mais, quem dá mais? Ali, pois não! O que? Caramba! Um BEIJO! Hummmm... mas de que tipo? Iscariotes? Cleópatra? Helena? Julieta? Salomé? Bem, eu...
Como disse? Um ESPELHO? Um espelho!!! Cacete... essa foi de lascar, agora aguenta! Sim, sim... por que não um espelho? Já entendi... quer que eu troque esse mergulho no Vale por um bangue-jampe em mim mesmo, é isso? Bacana... Se nisso aí estiver incluso o rapel, eu acho que vou aceitar o lance... Dou-lhe uma... dou-lhe duas...
(surge o homem imundo, segurando as calças recém-erguidas, oferecendo um montículo da própria merda em uma mão e um punhado de damas-da-noite na outra)
VENDIDO PRA O CIDADÃO IMUNDO!
(desce do parapeito, guarda as câmeras no case e segue em direção à Casper Líbero)
CENA III

(breve video-tape da visita de João Paulo II ao Brasil, nos Anos 80. Música: "A Benção, João de Deus". Corta. 2009. Hora de almoço, duas garis surgem varrendo o Viaduto Santa Efigênia. Param para descansar ao lado de uma estátua-viva)

Mulher 1
(apreciando, descrente) E num dá vontade de passar o espanador?

Mulher 2
E tem gente que paga... Só nesse interim já vi mais de dez pingá molhado aí na canequinha... Até nota da amarelinha, eu vi... E troco é rima que não faz parte dessa poesia aí, não... Já te contaram a historinha da Cigarra e da Formiga, Suzete?

Mulher 1
(enquanto desembrulha um sanduba)
E vai me dizer que ela tá errada, é? Besta é nóis, Suzana, que ainda acredita que desconto no holerite é "coisa da vida"... Um dia o Silvério me falou que, seu Deus quisesse, eu ainda encontrava bilhete limpando sujeira que ninguém assina...

Mulher 2
Besta é tu, que pensa assim, fia dum capeta. Eu prefiro sair limpinha da vida a... a... sei lá, a pagar esse mico aí (estatuista), ó... Raça! (barulho de moeda caindo na latinha do artista) Cês tão criando um monstro, seus boió! Põe na poupança! Paga o carnê! Enfia no...

Mulher 1
Deixa o povo em paz, Suzana! Cada um vende o peixe que pode pescá...

Mulher 2
Me poupa desse papo besta, mulhé!...

Mulher 1
Ah, então quer dizer que não tá vendendo nada, não, é? Mavá!

Mulher 2
E eu vendo o que, possabê?

Mulher 1
E o papa, mulher?

Mulher 2
(segurando o vassourão de forma agressiva)
Por que é que tu não costura essa boca e vai recolhê de uma vez o monte, ali, hein?

Mulher 1
Fica esperta: o João Paulo já foi e já entrou um novo... E cadê de tu ir lá, debaixo da janelinha dele, abanar esse bendito lencinho rosa da tua mãe?

Mulher 2
Recolhe logo aquela merda, antes que passa o supervisô e eu levo a culpa junto!

Mulher 1
Tu tá nos dia, já?! (pausa. Ela acaba o sanduba, joga a embalagem no próprio carrinho, se levanta, se espana) Por que é que tu não pega o lenço rosa, Su... aquele bordado pela tua mãe...

Mulher 2
Tu qué sentir o gosto daquele montinho nessa tua língua, ocê qué?

Mulher 1
Põe o papa dentro dele, mulhé...

Mulher 2
(olhar vidrado na direção do Mosteiro) Inda outro dia ele não tava ali mesmo, no Largo? Quase que consegui chegá perto, foi não? (pausa) Bóra...

Mulher 1
Ergui minha vassoura bem na hora que ele fez o sinal da bênça... (beijando a vassoura) Meus dias tão ganho, agora! (aproximando-se da colega) É o lenço, Su... só o lenço...

Mulher 2
(recompondo-se, fria) Fica aí. Fica e pede pro seo Menezes não me perguntar docê...
(segue pelo viaduto, varrendo a guia e deixando os montinhos pra ser recolhido pela colega)

Carla
(parando uma última vez, diante do/a estatuista) Se tu fosse Santo Antônio, te dava vintão!

(segue em direção ao primeiro dos muitos montinhos de sujeira recolhida da guia)